domingo, fevereiro 03, 2008

A Boa Morte

A Igreja de Nossa Senhora da Boa Morte é uma das caras mais conhecidas da velha Cuiabá. Foi erguida por volta de 1810, e em 1827 é registrada por Florence (Viagem fluvial do Tietê ao Amazonas) como pertencente à Irmandade dos Homens de Cor. Em 03/05/1905 foi criada paróquia de mesmo nome, sendo a igrejinha elevada a Matriz por ato do bispo D. Carlos Luiz d'Amour.
A Boa Morte se situa no centro de uma praça de mesmo nome. Subindo pela rua de trás, Marechal Floriano, a primeira esquina é com Zulmira Canavarros. Aí se inicia a quadra que é inteira ocupada pelo Centro de Educação Tecnológica de Mato Grosso - onde estudei dos quatorze aos dezessete anos, cumprindo o Segundo Grau.
Passávamos pela frente dela todos os dias, em bando, porque pegávamos o ônibus logo ali embaixo, na Praça Alencastro, que tem como lado a mesma rua que a Boa Morte tem como frente - Cândido Mariano. Para a grande massa dos cuiabanos, a Boa Morte era apenas mais uma igrejinha antiga perdida no delirante centro histórico da cidade bandeirante, mais uma praça qualquer entremeando o trajeto. Mas para mim foi o primeiro contato diário com algo antigo de verdade.
Isso porque desde criança, desde os dez anos, mais ou menos, gosto loucamente de história, e dei o azar de ter nascido e sido criado em cidade tão nova quanto eu, onde a construção mais antiga em pé não tinha mais de cinco anos. Cuiabá logo me fascinou com suas construções mais que centenárias tão inconscientemente bem cuidadas, como parte do dia-a-dia dos cuiabanos que eram.
Quando meus amigos, filhos da terra, passavam quase a ignorando - com exceção dos poucos devotos que faziam o sinal da cruz -, eu a encarava encantado, deslumbrado pelos seus quase duzentos anos! Eu a encarava e encarava a paulicéia que andava no largo pantanoso de que a igreja era o marco no século XIX. Eu via ali as origens de Cuiabá, via os pretos rezando no interior pobre e sentia o cheiro das velas queimando em dia de finados.
Nos diversos sobrados e casarões que cercam a praça eu via cuiabanas ralando guaraná na janela, via bandeirantões pitando nas portas da rua, via duelos de facas, via escravos surrupiando ouro. Chegava mais pra trás e via meus parentes Miguel Subtil de Oliveira, Paschoal Moreira Cabral Leme e Manoel Pires de Campos, paulistas que povoaram estas bandas, desfilando seus administrados.
Em Cuiabá tinha todo o dia contato com cada geração anterior à minha. Adorava ver nos nomes de minhas professoras os ancestrais da terra, os maiorais de outrora, a repetição e a encarnação dos nomes que lia em genealogias de José de Mesquita: Ana Antonia de Arruda Ribeiro, talvez a décima do nome; Vânia que era Nadaf, filha de libanês, mas neta de Botelho e Pereira Leite pela mãe.
Tudo em Cuiabá me transpira a história. E todos os dias lembrava disso, quando passava, reverente, em frente à Boa Morte.

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